15 agosto 2008

Conta-me como foi

A RTP1 está a retransmitir uma série portuguesa chamada Conta-me como Foi. A série é, sem dúvida e tal como a anunciam, uma das melhores produções nacionais de sempre, com grandes actores, óptimos cenários e adereços, etc. …
O argumento da série, segundo julgo saber, baseia-se no dia-a-dia de uma família lisboeta (pretensamente) típica, dos finais dos anos 60. Parece ser também intenção dos autores dar a conhecer aos portugueses do século XXI a vida em Portugal nos anos finais da ditadura. Neste particular, contudo, a série não é propriamente fiel à realidade das condições socioeconómicas, culturais ou políticas do país na altura.
A família retratada vive, ao longo de toda a série, com um desafogo relativo. É compreensível que os autores não se baseassem numa família das classes mais empobrecidas e exploradas da altura, caso em que, certamente, haveria pouco para contar. Seria pouco mais que um círculo vicioso onde as necessidades fisiológicas básicas do ser humano seriam entrecortadas por um período de trabalho de entre dez a doze horas e, eventualmente, uma actividade lúdica de fraca qualidade, possivelmente passada à volta de uns copos de álcool. Isto para o homem, pois a mulher além do trabalho fora de casa teria ainda as tarefas domésticas para realizar.
Contudo, numa época em que o revisionismo histórico (que não me parece ser a intenção da série em causa) se assume cada vez com mais força, numa tentativa de branquear a ditadura fascista que oprimiu o povo português durante 48 anos, a série poderá ajudar a formular uma ideia completamente errada da vida das famílias portuguesas naquela altura.
A justificação dada para a existência desse relativo desafogo económico é dada pelo facto de o “chefe da família” exercer duas profissões e de os restantes membros da família também trabalharem de forma excepcional. Contudo, naquele tempo, como hoje, quem trabalhava dificilmente conseguiria fugir á penúria que era gerada, precisamente, pela exploração do seu trabalho, mesmo para os funcionários do Estado (como é o caso) cujos salários se encontravam exauridos.
O engano acerca da qualidade de vida na altura poderá ser criado pelo facto de a família possuir telefone, rádio, televisão, máquina de lavar roupa, frigorífico, electricidade (sem a qual os anteriores objectos seriam inúteis), água canalizada, uma casa de boa qualidade (com quartos para cada membro da família), roupas de grande qualidade e em quantidade, efectuarem viagens ao estrangeiro, ter um membro a frequentar o ensino superior, etc. …
Sendo certo que havia uma melhoria relativa da qualidade de vida no país em relação às décadas anteriores, em especial devido às remessas dos emigrantes, apenas uma ínfima minoria dos portugueses poderia sequer sonhar com este estilo de vida.
Mesmo sem ter qualquer tipo de dado para o afirmar, atrevo-me a dizer que as zonas mais miseráveis do país se encontravam na cintura de Lisboa. Bairros como a Brandoa, Galinheiras ou Musgueira conheciam uma realidade bem diferente. Muitas famílias viviam em casas abarracadas (para contrastar com as apalaçadas dos monopolistas) onde não havia electricidade, (tão-pouco os objectos referidos), água canalizada, ou o mínimo de conforto. Os bairros eram constituídos por ruas completamente desordenadas, por vezes não alcatroadas, onde a lama se tornava insuportável, e por vezes mortífera como nas inundações de 67 (pelo menos 458 mortos). As crianças passavam os dias entre a frequência de uma escola opressora e a deambulação pelas ruas, sem haver qualquer tipo de estruturas ou programas de tempos livres. A sua indumentária poderia variar de uns andrajos inqualificáveis a uma roupa minimamente apresentável, mas sem a qualidade referida. Havia ainda crianças que só muito tarde calçavam os seus primeiros pares de sapatos.
Noutro plano as referências aos comunistas na série também pouco condizem com a realidade, chegando o protagonista a vender uma tipografia a um militante do PCP para ser utilizada nas actividades do Partido! Ou o facto de os que lutam contra o Regime serem oriundos das classes altas, frequentando as faculdades, correspondendo certamente mais à ideia que faço dos esquerdistas da altura, que daqueles que efectivamente resistiam contra a opressão fascista.
Volto a dizer que a série é de grande qualidade, e em nenhum momento pretende ser um documento histórico. Contudo se quisermos contar como foi, de certeza que haveria muito mais para contar…







Arredores de Lisboa, anos 60


Brandoa, anos 60


Santa Iria da Azóia, 1965

3 comentários:

Fernando Samuel disse...

E essa é que é a questão: de certeza havia muito mais e mais importante para contar. No entanto, nos tempos que correm «conta-me como foi» é bem bom, como dizes.

Um abraço.

Anónimo disse...

Olha camarada
Quem viveu a época como eu que nasci em 1942, sabe que esta família representada na peça, era já uma família da classe média alta, por isso tens toda a razão quando falas na tentativa de branqueamento daquela coisa que por muitos nomes que lhe atribuam, não seram suficientes para definirem aquela catástrofe nacional.
Agrande maioria dos portugueses vivia miserávelmente, eu nem vou debulhar senão ficava aquí a noite inteira.
Abraço

samuel disse...

A série é a adaptação para Portugal da série "Cuentame como pasó". Sou fâ da série espanhola. Não foram nada "meigos" com o seu passado, escolheram musicas de intervenção da época em maior quantidade e também vão muito bem como actores.
Claro que gosto da portuguêsa...

Obrigado pela ida à "festa de anos"!

Abraço